A culpabilidade constitui um dos pilares da teoria do delito no direito penal mo-derno, sendo tradicionalmente compreendida como o juízo de reprovação dirigido ao autor de uma conduta típica e ilícita. Historicamente, a consolidação dessa categoria teve como uma de suas principais funções a de servir como garantia contra formas objetivas de responsabilização, especialmente diante do Estado penal absoluto e inquisitivo do pas-sado. A máxima nullum crimen sine culpa, nesse contexto, representava não apenas um pos-tulado técnico, mas uma conquista político-jurídica essencial.Contudo, as últimas décadas têm testemunhado uma crise progressiva da noção de culpabilidade, tanto em seu fundamento quanto em sua aplicação prática. Essa crise se desdobra em diversas frentes: os questionamentos ao livre-arbítrio a partir da neurociên-cia; os impasses conceituais da responsabilização penal da pessoa jurídica; a tensão entre culpabilidade e erro de proibição no direito penal econômico; a fragilidade do juízo de censura diante de realidades sistêmicas; e os desafios impostos por transformações tecno-lógicas. Trata-se de uma crise estrutural, não apenas conjuntural, que coloca em xeque os próprios alicerces da imputação penal subjetiva.A noção clássica de culpabilidade, fundada sobre o pressuposto da autodetermi-nação racional e da dirigibilidade normativa, encontra-se desafiada por novos saberes. A neurociência, por exemplo, sugere que a vontade livre pode ser uma ilusão, desestabilizan-do as premissas ontológicas do poder de agir de outro modo.Por outro lado, a crescente complexidade das relações sociais e empresariais difi-culta a exigibilidade de condutas ajustadas, em especial nos delitos de organização ou em contextos regulatórios voláteis. Além disso, a emergência de sujeitos coletivos no direito penal – como as empresas – exige a reformulação ou, segundo alguns, o abandono da cul-pabilidade como critério de imputação pessoal.