MULHER SURDA: PROTAGONISMO E EXPERIÊNCIA

Revista Espaço

Endereço:
DIESP - Rua das Laranjeiras, 232, Laranjeiras. Rio de Janeiro – RJ, - Sala 309 - Laranjeiras
Rio de Janeiro / RJ
22240-003
Site: http://www.ines.gov.br/seer/index.php/revista-espaco/index
Telefone: (21) 2285-7546
ISSN: 25256203
Editor Chefe: Wilma Favorito
Início Publicação: 31/12/1989
Periodicidade: Semestral
Área de Estudo: Educação, Área de Estudo: Letras, Área de Estudo: Linguística, Área de Estudo: Multidisciplinar

MULHER SURDA: PROTAGONISMO E EXPERIÊNCIA

Ano: 2024 | Volume: Especial | Número: 60
Autores: Gladis Perlin, Keli Krause, Marianne Stump, Patrícia Rezende-Curione
Autor Correspondente: Gladis Perlin | gladisperlin@gmail.com

Palavras-chave: Apresentação

Resumos Cadastrados

Resumo Português:

Por que um dossiê sobre a mulher surda?Para responder a essa pergunta compreendamos que, no que tange às mulheres surdas, a nossa presença pouco mencionada se dá simplesmente por comumente a sociedade considerar a mulher como inferior ao homem e por costumar nos evitar por sermos surdas. O contexto social ainda considera a nós mulheres surdas como deficientes, incapazes e muitas vezes como revoltadas, gritantes e sem noção. É corrente perceber que nós mulheres surdas possuímos o rotulo de deficientes, doentes e incapazes. E tudo isso acarreta a presença gritante da violência linguística. Então um dossiê para o esclarecimento de nossas existências no mundo social como mulheres surdas se faz necessário.Na atualidade, frente a tantos anos passados no silêncio e na desigualdade, o nosso despertar como mulheres surdas avança, mesmo que em um processo demorado e árduo. Diante do olhar social, a pergunta que nos fazemos é: O que, como mulheres surdas, precisamos face à sociedade que nos exclui? E para tentar responder a esta pergunta, temos que nos situar nos entre-lugares¹ onde estamos nas relações sociais necessárias: família, questões de segurança, de saúde, de educação, e das nossas presenças nas diversas instituições públicas. O interessante é que algumas de nós, protagonistas surdas, conseguimos nos aventurar nesses espaços partilhando resultados e experiências, mesmo que individuais, com as companheiras.Em nossa história de mulheres surdas brasileiras registramos o mês de novembro de 2004, no qual realizamos o primeiro encontro latino-americano para mulheres surdas. Esse evento foi definitivo para que nos pensássemos como mulheres surdas e a partir do encontro nos motivamos conjuntamente na caminhada para refletir nossa identidade. Naqueles dias estávamos despertando. Já existia entre nós a consciência sobre o audismo² e sua forte presença nas estruturas sociais. Houve outros encontros locais, ou estaduais pois, muitas de nós conseguiram reunir as mulheres surdas e com isso conscientizar-nos da necessidade de nos unirmos, debater as nossas necessidades e principalmente a violência linguística. No CONALI³ conseguirmos colocar no papel as necessidades e denunciar a violência linguística reinante, colocando em evidência o legado de luta, a partilha de caminhos de enfrentamento⁴ já percorridos ao audismo e patriarcalismo ou seja: apagamento, violência linguística, violência racial, e sexismo. Assim, mais do que compartilhar experiências baseadas na incompreensão, audismo e exclusão, partilhamos processos de resistências. Muitas de nós enfrentamos um audismo cujas consequências as experiências mostram como sendo central a violência linguística, ou seja: “o mundo é feito para os ouvintes e a nós sobra a incomunicação, então temos que mudá-lo”. Diante disso, em nosso tempo, assumimos o protagonismo com o lema: “nada sobre nós sem nós”. Daí fomos evoluindo em questões a nós referentes e guiadas por nossas experiências compartilhadas.

Fora isto, algumas de nós já inseridas no mundo acadêmico buscamos por temáticas transversais relacionadas ao ser mulheres surdas gerando assim nosso espaço epistêmico: identidade surda, cultura surda, Libras, linguística das línguas de sinais, educação bilíngue, pedagogia surda, história surda, além de outros aspectos culturais próprios. E assistimos aos poucos a descolonização do nosso conhecimento. O negativo foi a forte presença do epistemicídio⁵, ou seja, a rejeição de nossas produções que falam de nós como mulheres surdas, em lugares onde desde sempre esteve o poder ouvinte. Alguns exemplos: as mulheres ouvintes acostumaram-se a falar por nós; a inclusão escolar implementada pela Secretaria de Educação Especial, obrigatória às meninas surdas; as nossas teses e dissertações foram apartadas das oportunidades de gerarem epistemologias no sistema educacional; etc. Esses são alguns dos muitos exemplos. Com algum apoio conseguimos fazer valer nossa presença, em parte, ao longo do tempo. Enfim nos constituímos como mulheres na luta contra as artimanhas audistas, ou seja, a violência linguística que nos nega lugares de participação efetiva. Daí, lutamos preferentemente contra a violência linguística contribuindo para que a denominada Lei de Libras fosse aprovada e por fim regulada e com o tempo novas leis foram elaboradas, sendo implementadas por governos democráticos a nosso favor. Nossas experiências pensadas foram tomando lugar com reuniões, reflexões. Não ficamos alheias e para isso percorremos também a caminhada das mulheres em geral: as mulheres ouvintes, as mulheres cientistas, mulheres professoras, as mulheres negras, as mulheres indígenas, e percebemos suas lutas específicas, mas só nos sentimos mulheres surdas quando fizemos valer nossa identidade própria de mulheres surdas. Falando de nossa identidade nos reportamos a que somos diferentes e não deficientes. Não somos como as demais mulheres ouvintes com deficiência; temos nossas especificidades linguísticas diferentes delas. Também temos muito a lutar como as mulheres ouvintes, brancas, negras, indígenas, deficientes, cuja luta é por igualdade de gênero, contra a estrutura patriarcal, ou da mulher negra para a qual as lutas consideram o racismo, consequências da escravidão e objetificação sexual, ou ainda a mulher indígena também apagada e necessitada de autonomia e a mulher com deficiência e com suas lutas voltadas a diferentes direitos ainda não alcançados. Nós temos também os nossos próprios tópicos de luta como a violência linguística e a necessidade de ter nossas capacidades comprovadas a fim de que não nos releguem ao rótulo de deficiência, mas nos aceitem como mulheres com diferença. Em tempo, uma outra questão recorrente é sobre a violência sexual que nos intersecciona com todas as mulheres. O Brasil, segundo dados amplamente noticiados na imprensa e redes e sociais, tem um recorde anual elevado e crescente de estupros e isso se constitui, a nosso ver, em uma epidemia. E nós, mulheres surdas desprovidas de facilidades de comunicação, nos tornamos as maiores vítimas.De posse do conhecimento de nossa identidade como mulheres surdas, nós e nossas demais companheiras protagonistas estão na busca por direitos e na luta contra a violência linguística e sexual. No momento estamos nos conscientizando das nossas questõesinterseccionais. Consequentemente fazemos algumas exigências radicais por políticas linguísticas, econômicas e sociais e institucionais e a partir disso estamos usando e fortalecendo nosso “lugar de fala” nos entre-lugares onde as questões exigem mais embates. Esse foi nosso ponto de crítica às mulheres ouvintes, acostumadas a falar por nós. Elas estão aos poucos, mesmo que minimamente, mudando seus olhares, e em alguns casos, já reconhecem que devemos e queremos falar por nós mesmas. Vamos prosseguir, pois nossas questões vão sendo legitimadas como inerentes à questão da mulher surda. Demorou muito e ainda consideramos que pouco fomos ouvidas pela sociedade e pelas outras mulheres. Resta-nos enfatizar aqui o heroísmo de algumas das nossas que assumiram lançar-se ao desconhecido e com isso temos protagonistas surdas trabalhando pela visibilidade de novas epistemologias, compartilhantes de experiências válidas, nas quais vamos nos espelhando. Isso tudo não somente nos motiva à urgência por existir na diferença, mas também ressalta a importância de evidenciarmos algumas mulheres surdas que historicamente produziram e produzem insurgências contra o modelo dominante do audismo promovendo disputas de narrativas referentes sobretudo à violência linguística. Nesse sentido é necessário que pensemos a partir de novas premissas para desestabilizar verdades.A seguir apresentamos os artigos do dossiê, os quais mostram os múltiplos entre-lugares em que atuam as mulheres surdas, com suas histórias de vida e narrativas.A doutoranda Ana Paula Gomes Lara, professora surda gaúcha, traz para esse dossiê as mulheres-surdas-professoras gaúchas que atuam na educação de surdos no Rio Grande do Sul. Ela também aponta um rol de violências linguísticas em educação que acompanha essas mulheres-professoras surdas. Lara teceu um perfil dessas professoras, pois entende que as práticas diárias de muitas delas são espaço de pedagogia surda. As professoras dra. Gladis Perlin e ms. Ana Paula Jung escrevem sobre a questão da mulher surda expondo suas experiências no CONALI II. As mulheres surdas reunidas constataram que são apartadas do convívio social pela forte incidência da violência linguística. Alguns diálogos realizados pelas mulheres surdas nesse encontro trazem vivências também das múltiplas violências imputadas a elas socialmente. As autoras trazem a público o relato das mulheres surdas e o abandono social a que estão expostas. O espaço da mulher surda indígena é abordado aqui pela doutoranda Shirley Vilhalva. Ela objetiva a escrevivência como mulher, indígena, surda, professora, pesquisadora e participante das lutas dos Movimentos Surdos. Questiona a omissão da potencialidade do Ser e Estar da mulher indígena surda. Ela percebe a necessidade presente de novas questões interseccionais: direitos linguísticos, diversidade; identidades e especificidades em relação aos direitos das mulheres surdas indígenas, bem como a suas línguas de sinais e suas diferentes culturas étnicas.Dra. Gisele Rangel explorando as possibilidades do campo teórico dos Estudos Culturais e Estudos Surdos, trazem mulheres surdas que fizeram valer suas capacidades como heroínas, pioneiras e protagonistas em diferentes entre-lugares. As autoras concluem que essas mulheres surdas são geradoras de novas forças sobre a pessoa surda nos meios sociais. Dra. Keli Krause, em sua análise comparativa sobre o atendimento de mulheres surdas em países latino-americanos, destaca que há diferenças importantes a como essas nações atendem as mulheres surdas, a depender do grau de conquistas democráticas alcançadas em cada sociedade. Mas o despertar das mulheres surdas depende ainda dos momentos em que elas se unem, que tomam consciência de seus problemas. Dra. Luciane Cruz Silveira & Angela Corrêa Ferreira Baalbaki escrevem sobre a mulher surda cientista. E trazem um perfil dessas mulheres surdas cientistas no mundo e citando algumas no Brasil. Dificuldades existem, mas ser mulher surda não é uma barreira para dedicar-se à ciência. A criação de uma epistemologia referente aos surdos existe e é creditada muitas vezes a essas mulheres surdas. E convenhamos que como mulheres temos muita capacidade de entender os surdos, suas necessidades e participar na defesa do lugar social dos surdos.Dra. Marianne Stumpf, Dra. Patrícia Rezende-Curione, & Joyce Souza focalizam o polêmico caso da mulher surda brasileira Sonia Maria de Jesus destituída de direitos legais por aproximadamente 40 anos. Corajosamente, com esse artigo denunciam a presença de relações escravagistas nos dias de hoje a que Sonia foi submetida, além de ter sofrido também epistemicídio, violência linguística, e outras violências interseccionais que ocorrem no caso e que envolve alguns de seus legitimadores nas instâncias judiciais brasileiras. No momento esse caso ganha campanha global pela libertação de Sonia. A colombiana Edith P. Rodriguez-Diaz da Universidad de Antioquia nos traz um ensaio em que as trajetórias das mulheres surdas colombianas se sobressaem. Rodriguez-Diaz insiste na necessidade de se abrirem caminhos à reflexão sobre a dimensão da violência que atinge a mulher surda colombiana, trazendo pistas para entender a discriminação, a violência linguística, bem como a superproteção familiar a que está sujeita.Por fim, gostaríamos de dizer que, nós quatro mulheres surdas, organizadoras desse dossiê sentimos como foi difícil conseguir entre as mulheres surdas os artigos aqui publicados. Poucas de nós são escritoras. O português é a barreira... No entanto salientamos que das doze escritoras desse dossiê apenas duas, Jung e Baalbaki são ouvintes. A questão com as atuais chuvas, na maior enchente no Rio Grande do Sul, nos afetou também. As quatro escritoras gaúchas tiveram muitos contratempos como: a coleta de dados de pesquisa em meio ao caos, as preocupações, a angústia, o pânico, as ocupações de solidariedade, a correção do português (ninguém tinha concentração para corrigir), o caos da internet, a falta de luz e água muito atrapalharam.Esperamos com esse dossiê conseguirmos compreensão da sociedade sobre nossa diferença e que as violências que sofremos sejam mais bem percebidas e entendidas.